domingo, 12 de fevereiro de 2012

Crônica: O recado ao Senhor 903

RECADO AO SENHOR 903
Vizinho....
Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal – devia ser meia-noite – e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explicito e, se não o fosse, o senhor ainda teria ao seu lado a Lei e a Polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003. ou melhor: é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003, me limito a leste pelo 1005, a oeste pelo 1001, ao sul pelo Oceano Atlântico, ao norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 – que é o senhor.todos esses números são comportados e silenciosos; apenas eu e o oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometo sinceramente adotar depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão; ao meu número) será convidado a se retirar às 21:45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7 pois às 8:15 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará até o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda numerada; e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas – e prometo silêncio.
...Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: “Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou”. E o outro respondesse: “Entra, vizinho, e come de meu pão e bebe de meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela.”
E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer [...] o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.
BRAGA, Rubem. 200 crônicas escolhida, 4ª ed. Rio de Janeiro, 1980

1. Qual a principal idéia do texto?
a) A briga entre vizinhos de um prédio residencial.
b) O barulho e a confusão no apartamento 1003.
c) A carta e a reclamação verbal do vizinho 903.
d) O sonho de uma vida melhor e mais solidária.

2. Segundo o autor, quem faz barulho?
a) O vizinho 903 e a rua.
b) O senhor 1005 e os ventos.
c) O morador 1004 e a maré.
d) O homem do 1003 e o mar.

3. O que o narrador pretende ao utilizar números no texto?
a) Aceitar a distância existente entre as pessoas do edifício.
b) Criticar a indiferença existente entre os moradores do prédio.
c) Concordar com a frieza predominante das relações humanas.
d) Valorizar a boa educação comum a todos do grupo.

Obs: Atividade retirado do MEC - Matrizes de Língua Portuguesa - Prova de Desempenho

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